Patrono

Fernão Mendes Pinto

Viajante, aventureiro e escritor português do século XVI, nascido em Montemor-o-Velho, que percorreu todo o Oriente e Extremo Oriente na primeira metade do séc. XVI e com base nessas aventuras veio depois a escrever o célebre livro "Peregrinação".

Este interessantíssimo texto, graças ao fascínio e à curiosidade dos leitores de todas as épocas, ficou para sempre cotado como uma obra prima da literatura portuguesa quinhentista, e uma das obras máximas mundiais da literatura de viagens de todos os tempos (apesar da evidente má vontade com que tal texto e memória do seu autor foram sempre perseguidos em muitos círculos oficiais, que secularmente tentaram recusar a verdade das informações lá contidas, e difamar o seu autor).

Fernão Mendes Pinto nasceu em Montemor-o-Velho 1510, certamente de origens populares (e tendo já modernamente sido posta uma alegada proveniência cristã-nova, mas sem que na verdade nada de concreto se saiba acerca disso). Como servidor, quer em Portugal quer no Oriente, sempre se movimentou na órbita de famílias nobres ligadas à Casa e Ducado de Coimbra (nomeadamente nas casas de vários membros da família dos Farias e, durante algum tempo, na casa do próprio Senhor D. Jorge Duque de Coimbra, Senhor de Montemor e administrador do Mestrado das Ordens de Santiago e Avis).

O jovem Mendes Pinto, com "10 ou 12 anos", em Dezembro de 1521, para se livrar da "miséria e estreiteza da pobre casa de meu pai", saiu de Montemor em busca de fortuna, passou por Setúbal, Santiago do Cacém e Lisboa, após o que, para escapar a uma situação complicada (certamente em relação com um célebre desenlace passional e familiar que havia na casa em que trabalhava em Lisboa, de um fidalgo Faria) - ou talvez para escapar a quaisquer possíveis curiosidades e perseguições futuras do "Santo Ofício" da Inquisição que estava então em processo de criação... -, embarcou e partiu em 1537 para a Índia e o Oriente. Partiu, como ele mesmo viria a escrever depois, "ainda que com pouco remédio, já oferecido a toda a fortuna, boa ou má, que me sucedesse".

No Oriente e Extremo Oriente vagueou durante cerca de vinte anos, principalmente na Índia, Insulíndia, Indochina, China e Japão. Esteve em Malaca com o capitão local português, Pedro Faria. Depois conheceu e acompanhou de perto, quer o apóstolo do oriente, São Francisco Xavier, que foi seu amigo e o impressionou vivamente pelo carácter moral e pelo exemplo, quer o temível corsário António de Faria (natural, como ele, de Montemor-o-Velho, mais concretamente da Quinta do Canal), sob o comando do qual participou em sangrentos episódios, roubos e chacinas nos mares orientais (factos que depois contaria na sua obra "Peregrinação", obra em que António de Faria viria a ser um dos personagens preponderantes).

Nessas multifacetadas e contraditórias experiências se movimentou e teve que sobreviver, e assim provavelmente amadureceu o seu carácter, o seu cepticismo relativista e a sua capacidade de observação crítica, formando o seu olhar peregrino. Em amplas deambulações e impressionantes aventuras, Fernão Mendes Pinto passou por muitos "trabalhos, cativeiros, fomes, perigos e vaidades" - como ele próprio viria a escrever na sua carta autobiográfica de 1554 (e, depois, viria a relatar minuciosa e coloridamente no seu incomparável livro) - e, entre as suas muitas deambulações e aventuras, uma teve a ver com o facto de, juntamente com alguns outros poucos companheiros, ter sido ele o primeiro português e o primeiro europeu a contactar o Japão, cerca de 1542 (facto cuja veracidade histórica não deve hoje em dia ser negada, apesar de todas as más-vontades que no passado o tentaram contestar ou escamotear).

Fernão Mendes Pinto voltou a Goa em 1554, com a intenção de daí regressar logo a Portugal trazendo a fortuna adquirida (nessa época, nas próprias palavras do autor da "Peregrinação", como cita o Prof. Charles Boxer, ele estaria então com o sentimento que transparece na sua curiosa frase "parecendo-me que a minha glória e felicidade estava a entrar em Montemor com nove ou dez mil cruzados. E que como hum homem não roubasse o calix ou a custódia da igreja ou fosse mouro, que por nenhüa outra via se podia temer o Inferno e que abastava ser christão e que a misericórdia de Deos era grande". Porém não regressou a Portugal e, em vez disso, quando da chegada a Goa do cadáver do seu amigo Padre Francisco Xavier, teve um acesso de religiosidade e arrependimento pela sua vida passada, e por isso entrou na Companhia de Jesus como irmão leigo, entregando-lhe os seus bens.

Colocando ao serviço dos Jesuítas os seus conhecimentos pioneiros do País do Sol Nascente, acompanhou o Padre vice-provincial Nunes Barreto ao Japão, em 1556. No entanto, por motivos que parecem ser desconhecidos, veio logo pouco depois a afastar-se da Companhia de Jesus (embora, ao que parece, sem se incompatibilizar com os Jesuítas). Talvez lhe tenha sido devolvida pelo menos uma parte dos bens com que entrara na Ordem, ou talvez tenha juntado de novo alguma pequena fortuna, pois quando de imediato efectivamente regressou a Portugal, dispunha em 1558 de alguns meios de riqueza com os quais pode comprar uma pequena quinta rural perto de Almada, onde casou, criou as filhas, e escreveu o seu livro de viagens e aventuras no Oriente.

Curiosamente, parece não ter voltado à sua terra natal de Montemor-o-Velho (que, diga-se de passagem era nesta época alvo de perseguições da Inquisição, que cada vez mais iriam aí recrudescer, e iriam levar essa vila outrora próspera e urbana até uma situação de grande decadência e ruralidade). Fernão Mendes Pinto morreu no Pragal, perto de Almada, em 8 de Julho de 1583, poucos meses depois de finalmente ter recebido (em Janeiro desse mesmo ano, e já dada pela nova administração da Dinastia Filipina) uma tença anual de 2 moios de trigo em satisfação do requerimento que tinha apresentado à Coroa de Portugal nesse sentido muitos anos antes. A viúva, Maria Correia de Brito, que devia ser muito mais nova, só viria a falecer bastante mais tarde, em 1623.

A "Peregrinação", terminada c.1580, e publicada postumamente em 1614, é uma obra a todos os títulos notável. Apesar de todas as críticas que lhe têm tentado mover os seus detractores, sem êxito, secularmente a verdade é que ela não pode nem deve deixar de ser considerada como o mais verídico e o mais interessante de todos os relatos de aventuras na expansão portuguesa, e como uma preciosa fonte histórica para essa mesma expansão.


O julgamento da obra como mentirosa, e o trocadilho de "Fernão Mentes? Minto" feito com o nome do seu autor, devem ser compreendidos no âmbito de duas ordens de casualidades, ambas muito evidentes: em primeiro lugar a ignorância e a estreiteza de vistas daqueles que nunca viajaram (e, por isso, nesta época como em todas as épocas, e já desde o tempo de Marco Pólo, mostram estranheza e descrença por tudo aquilo que é grande, e monumental, e longínquo, e se conta por "milhões", e ultrapassa os números habituais do seu pobre quotidiano), e, em segundo lugar, a obvia má-vontade daqueles que perante a "Peregrinação" se sentiram desde logo, e para sempre se continuaram a sentir, incomodados e denunciados pela subtil mas radical franqueza com que o autor conta a verdade... - toda a verdade até a mais incómoda... denunciando a cobiça, corrupção e violência do colonizador... contando pormenorizadamente todas as misérias da guerra e da conquista (até as mais abjectas... desde roubo de túmulos até rapto de noivas, ou desespero em jangadas de náufragos), numa autêntica compulsão à Verdade pela Verdade, como forma de libertação e catarse... - acabando por isso o seu livro por se tornar num poderosíssimo e inteligentíssimo libelo contra todas as violências, injustiças e irracionalidades do imperialismo, da mentalidade senhoral e feudal, e das injustiças em geral no contacto entre os povos.

Nalguns aspectos, a sua descrição de civilizações extra europeias (sobretudo a da China) mostra mesmo um grande fascínio e admiração pela riqueza, ordenamento e perfeição da sociedade alheia, descrição essa que por isso chega a transformar-se numa espécie de teorização com laivos de utopismo e de contraponto às insuficiências da civilização europeia e portuguesa de então. É uma espécie de autoconsciência crítica, sob a forma de narração do olhar do Outro. Além disso, também no aspecto literário a "Peregrinação" (cuja fina ironia está presente até no próprio título...), em que se misturam vários tipos de discursividade (narrativa, autobiográfica, histórica, dramática, confessional, poética, epistolar, de oratória, etc.) é um texto sedutor, capaz de prender a atenção e a expectativa do seu leitor de ponta a ponta, no fio das suas aventuras sangrentas e das suas peripécias picarescas, em que, tal como na realidade, a verdade é sempre mais incrível do que a ficção.

O livro de Fernão Mendes Pinto, cuja redacção terá sido iniciada c.1569 e terminada c.1580 - e cujo manuscrito (já em sua vida muito consultado) o autor deixou por herança à casa votada à assistência das antigas prostitutas de Lisboa (!) - , só veio a ser publicado muitos anos depois da sua morte. Saiu finalmente dos prelos em 1614, numa edição impressa ao cuidado do cronista oficial de Portugal, Francisco de Andrade, que lhe terá dado uma diferente ordenação em capítulos, e feito arranjos, acrescentos ou supressões, que não se sabe até que ponto terão afectado o texto original (mas que se suspeita que terão feito desaparecer muitos aspectos ainda mais polémicos do que os que subsistiram).

Em Portugal no século XVII a "Peregrinação" só veio a ter duas edições, uma em 1614 e outra em 1678 (certamente devido à má-vontade de que já falámos, e que se alargaria a alguns círculos influentes eclesiásticos), mas no estrangeiro a obra foi desde logo imensamente difundida na centúria seiscentista, com sete edições em Espanha, três em França e três em Inglaterra. Este é na verdade em exemplo de uma obra que foi salva do esquecimento e da destruição pelo agrado popular dos leitores. Entregue ao Futuro, ficou o mais importante: o texto do viajante nascido em Montemor-o-Velho. "(...)" Como profeta no seu país, Fernão Mendes Pinto encontrou mais críticos do que defensores durante séculos inteiros (...) Tanto no estilo como na estética, a 'Peregrinaçam' é uma obra impar, não somente na literatura portuguesa, mas quiçá na literatura mundial. (...)" concluiu Charles Ralph Boxer, no século XX acerca de Fernão Mendes Pinto.

A chegada dos Portugueses ao Japão - acontecimento em que Fernão Mendes Pinto participou c.1542 - é um momento cuja importância não pode ser menosprezada, e cujo significado tem que ser enaltecido. Em certo sentido, esse acontecimento marca a culminação e o último momento do processo dos grandes Descobrimentos Geográficos e Encontros Mútuos de Culturas dos séculos XV - XVI, em cujo lançamento e execução Portugal desempenhou um papel pioneiro e decisivo.

Foi cerca desse ano de 1542, em dia e mês que parece não se poder determinar com exactidão, que um grupo de aventureiros portugueses - entre os quais se encontrava Fernão Mendes Pinto - , navegando a bordo de alguns juncos orientais, desembarcou no arquipélago do Japão (na ilha de Tanegashima). Foram os primeiros europeus a contactar directamente com o Império do Sol Nascente, ao fim de séculos e séculos de vagos ecos que chegavam ao Ocidente, a cerca de lendárias ilhas no Extremo Oriente. Seria a partir daí que os contactos portugueses com o Japão iriam florescer ao longo de cem anos (o "Século Cristão do Japão", como lhe chamou Charles Ralph Boxer).

Desde muito tempo antes de 1542 que no Ocidente Europeu havia conhecimento da existência do Japão (embora esse conhecimento fosse ténue e difuso, e por isso inflamasse a imaginação dos Europeus). Desde o tempo de Marco Pólo que se sabia da existência da rica e refinada civilização de "Cipangu" (que aparecia na cartografia europeia como uma grande ilha defronte da China, e havia sido representada por exemplo no mapa de Fra Mauro em 1448 - 1459, ou no globo de Martin Behaim em 1492, etc., e havia sido procurado em vão por Cristóvão Colombo em 1492). Fernão Mendes Pinto e os seus companheiros foram os primeiros a efectivamente chegar lá, e depois deles muitos outros Portugueses ao longo do século XVI lá foram ( e , mais tarde, a partir de certa altura, também Holandeses, Espanhóis, Ingleses, etc.).

Como obra literária e histórica, a "Peregrinação" de Fernão Mendes Pinto, pela verdade e riqueza da sua expressão, ficou para sempre como o mais apreciado de todos os livros de viagens referentes às Navegações, Descobrimentos Geográficos e Expansão Europeia. Os historiadores e os amantes da literatura têm-na apreciado devidamente. A sua divulgação internacional, sobretudo na língua Inglesa, tem sido imensa, e assim tem chegado até ambientes culturais muito mais vastos do que os da investigação histórica propriamente dita (diz-se, por exemplo, que o realizador Stanley Kubrik tinha um sonho antigo, que já não chegou a materializar, de rodar uma versão cinematográfica da "Peregrinação").As edições do fascinante livro ainda hoje se sucedem a bom ritmo. A última em língua Inglesa, datada de 1989, foi publicada pela Universidade de Chicago, e por isso largamente difundida para o mundo inteiro (embora tenha sido preparada por uma autora de nacionalidade norte-americana, chamada Rebecca Catz, que se veio a descobrir em 1993 que era plagiadora de textos historiográficos portugueses...).

A fortuna editorial e o agrado público desta obra têm sido de todos os tempos, e irão certamente continuar, para sempre. O livro do autor nascido em Montemor-o-Velho consubstancia a última e a maior das aventuras dos Grandes Descobrimentos Geográficos dos séculos XV-XVI. De certa maneira, pode dizer-se, com absoluta prioridade, que o tão célebre processo dos "Descobrimentos Portugueses" começa e acaba, de forma impressionante, na histórica vila (então ainda mais litorânea do que hoje...) de Montemor-o-Velho... pois a Montemor-o-Velho está ligada a figura histórica do Infante D. Pedro - o príncipe que, no século XV, depois de haver feito as suas "Viagens das Sete Partidas", foi o verdadeiro responsável pelo lançamento e incentivo dos inícios desses tais Descobrimentos Geográficos... - e a Montemor-o-Velho está ligada a figura histórica de Fernão Mendes Pinto... o popular que, no século XVI, nas suas aventuras que incluíram a sua chegada à mais longínqua e ambicionada de todas as terras (o Japão), e com o seu mais difundido de todos os livros de viagens (a "Peregrinação"), simbolizou verdadeiramente a culminação e o momento máximo desse processo dos Grandes Descobrimentos Geográficos Portugueses e Europeus. Os "Descobrimentos" que - para o bem e para o mal - levaram ao Encontro de Culturas entre as grandes civilizações do Planeta.

Alfredo Pinheiro Marques